Análise da Arte
No decorrer da história o fenômeno artístico foi interpretado de diversas formas e para que ele ocorra alguns requisitos são necessários. Para analisarmos estes requisitos, devemos estudar as interpretações destes fenômenos e suas diversas correntes no sentido de estabelecer padrões de avaliação e tentar nos aproximar da regra geral que unifique o criar artístico. Devemos considerar que essa regra existe, uma vez que é bem claro aos que debruçam-se sobre o problema que há de fato um “quê” que nos diz que um objeto pode ou não ser considerado como um objeto de arte.
Lançando-se mão da interpretação antropológica de Claude Levi-Strauss, existem três condições básicas para que ocorra o fenômeno artístico, (1a ocorrência de uma sociedade apta a produzir e compreender a obra, (2) o surgimento aleatório de pessoas capazes de produzir o fenômeno artístico e(3) o desenvolvimento de um tipo especial de senso de humor coletivo capaz de aceitar as novas idéias propostas pela obra de arte.
Ao surgirem, portanto, as condições de civilização, de indivíduo e a de consciência do fenômeno nasce o que chamamos de arte. Ainda que em todas as culturas humanas este fenômeno tenha se manifestado sempre que ocorreram essas três condições básicas, na cultura ocidental, ocorre algo diferente que é a descrição destas manifestações, ou seja, a sua apreensão teórica.
O pensamento ocidental deriva-se de três grandes correntes: a lógica grega, a dialética judaica e o pragmatismo protestante. Fazendo-se uma analogia com essas três vertentes, podemos analisar o que chamamos de arte por esses critérios. Convém ainda relacionar esses três níveis de interpretação com as tricotomias criadas por Charles Peirce nos primeiros esquemas sobre a ciência da semiologia, que colocam-nos três níveis de análise, a sintática, a semântica e a pragmática.
A primeira corrente artística existente é a corrente platônica-aristotélica e trata de uma análise sintática da obra de arte. Esta, por ser a mais longa e mais estabelecida pelo peso dos séculos, podemos considerar como a “main stream” do pensamento a respeito do fenômeno. Se fôssemos considerar esse fluxo como o de um rio, este seria o Nilo, longo, antigo e com grandes civilizações as suas margens. Esta é a corrente que as pessoas que não dedicam-se ao estudo do belo conhecem, ainda que intuitivamente, como sendo a verdadeira arte.
Como ponto de partida e estrutura desta corrente temos por um lado o pensamento platônico, no sentido de estabelecer a arte como simulacro de uma realidade, sendo que toda a história desta corrente artística versa sobre esta questão. Seguindo-se sobre esta direção, o primeiro sentido, que, apossando-se do modelo egípcio primordial, vai do século VI a.C. até o final do século XIX constrói o olhar sobre o naturalismo e, com Monet marcando o ponto de virada, o sentido oposto avança para a desconstrução da imagem nos elementos constituintes da obra de arte. A primeira seção desta estrutura chamamos de arte naturalista, após Monet, de arte moderna.
A visão platônica do simulacro (e de sua imagem de espelho, a desconstrução da imagem, ou o abstracionismo dos modernos) é uma visão racionalista, de hemisfério esquerdo do cérebro e tem contraponto e complemento no pensamento aristotélico da catarse e das emoções proporcionadas pela obra de arte.
Dessa forma, não basta para a arte sintática o simples simulacro, pois aqui também é importante, além da precisão de representação do artista ou conhecimento dos elementos constituintes da imagem, a escolha das suas emoções e os efeitos psicológicos com que a obra atinge o espectador.
O mundo das idéias, ainda que presente ao olho do observador do século XX em diante, não parece aqui ser importante, pelo menos dentro da arte da pintura e isso é que permite com que Da Vinci consiga pintar uma cena da astrologia pagã travestida de Santa Ceia no teto da Capela Sistina sem ser enviado à fogueira ou Goya consiga pintar os seus reis bobalhões, com suas esposas dominadoras e ainda ser pago por esses mesmos poderosos por essas imagens ofensivas. À arte do simulacro e da abstração, ainda que nitidamente intencional do artista, não cabe uma análise de significados. É por isso que hoje ouvimos músicas de Chico Buarque e outros autores que, em plena ditadura militar, compunham músicas altamente revolucionárias que passavam totalmente incólumes pela censura e nos perguntamos como isso podia acontecer. Acontecia simplesmente porque o nível de análise do censor e do homem comum da rua é um nível sintático a interpretação semântica é bem mais elaborada e controversa.
O segundo rio artístico podemos comparar ao Amazonas: volumoso e selvagem. Trata de todas as correntes pragmáticas da arte, ou seja, a arte do povo, as estatuetas de Mestre Vitalino, a Vênus de Willendorf, as pinturas de Altamira, os objetos de Arthur Bispo do Rosário, as danças do teatro balinês, enfim tudo aquilo que não é programado como arte e que não está no rio da arte sintática.
Esta é uma arte totalmente desorganizada e que, por isso, não tem escolas. Cada artista ou povo desenvolve sua própria expressão artística e, ainda que reconheçamos como arte, os critérios de avaliação são peculiares para cada peça.
A avaliação dessas obras não pode ser efetivada pelos critérios gregos do simulacro ou modernos do afastamento ao simulacro, pois, mesmo quando geradas no espaço geográfico que convencionamos chamar de ocidente, não foram geradas pela mentalidade ocidental, mas sim por artistas de outras regiões do planeta, que residem em regiões ermas ou rurais, internados em instituições psiquiátricas, etc. Toda a arte tradicional de culturas que não foram diretamente influenciadas pela cultura do ocidente, como a inca, chinesa, asteca, centro-africana, dos aborígenes australianos, dos indígenas da amazônia, etc. deve ser colocada nesse grupo.
Aqui, o critério de avaliação depende do bom senso e não tem regras fixas, a arte foge do critério apolíneo ocidental e entra em sua forma própria que é a da expressão pura.
A terceira linha artística é a linha semântica e pode ser comparada com o canal do Panamá, curta, importante e artificial. Aqui podemos inserir toda a arte conceitual.
Não é mera coincidência histórica o fato de que a Roda de Bicicleta, de Marcel Duchamp, pai da arte conceitual, tenha sido feita no mesmo ano (1913) da morte de Ferdinand de Saussure, pai da semiologia moderna. A arte conceitual nasce no mesmo instante em que é formulada a teoria semiótica e, ainda que em toda a arte exista o mundo das idéias permeando o do conteúdo, aqui a idéia é o principal e a obra em si perde o sentido como objeto material. A iconicidade é rejeitada como expressão artística e os meios de expressão escapam das regras convencionais. Aqui encontramos, de uma maneira geral ainda que não exclusiva, a pintura que não está sendo feita sobre uma tela, o drama que não está sobre um palco e a escultura que não é feita com cinzel, pois a mensagem não depende de um meio convencional para existir.
Estabelecemos, portanto, que existe uma diferença no que chamamos de arte. Não podemos colocar lado a lado obras de grupos diferentes, pois, ainda que tenhamos um critério comum que permita nomearmos pelo mesmo nome, não é comparável uma escultura de arte geográfica com um dólmen megalítico, ainda que ambas sejam “arte da terra”.
Podemos dizer que Picasso é melhor do que Fra Angelico e que Leonardo da Vinci é melhor do que Klee e dar por isso, além de valores morais, até mesmo valor econômico para as obras de arte simplesmente porque pertencem ao mesmo grupo, apesar de estarem distantes em tempo e espaço. Em todos os artistas sintáticos existe algo em comum que é a aproximação ou o afastamento da representação e uma emotividade mais ou menos significativa.
Fica mais difícil de dizer se um sarcófago egípcio é melhor ou pior do que uma instalação feita com carros velhos empilhados, pois um é de um grupo pragmático, outro do grupo semântico.
No entanto, existe sim essa comparação, ainda que em alguns casos. A lata de sopa Campbells de Andy Warol tem um valor de compra, portanto é comparável, sim, a um quadro de Renoir. Segundo esta análise, Warol é conceitualista e Renoir, sintático. Como resolver este paradoxo?
Acontece que os três grandes fluxos artísticos não são estanques. Não podemos extrair Warol da cultura ocidental e, por este motivo, muitas vezes a linha de arte conceitualista aproxima-se da arte sintática e usa critérios muito próximos ao ponto de poder serem comparadas uma com a outra. Ao contrário, como vimos, assim como não foi Newton que inventou a força da gravidade, não foi Saussure que inventou a semiologia, pois ela sempre existiu e na arte. Isso é muito flagrante. Durante toda a história da arte se tentou comunicar idéias por meio de representações, não é isso que torna uma obra conceitual. Estas aproximações obviamente existem, há de fato uma osmose entre os critérios, mas devemos lembrar também que podemos dar exemplos bem mais afastados deste eixo central e que tornam claro essas diferenças.
Como fazer uma avaliação monetária de uma obra de arte geográfica de Christo? Quanto vale, em termos econômicos, a Vênus de Willendorf?
As arte conceitual não tem valor econômico por um simples motivo. Ela é composta de idéias e todos reconhecem, inclusive a WIPO (organização internacional de propriedade intelectual) que idéias não podem ser negociadas. ainda que conheçamos a autoria das obras, não pagamos nada por elas. O valor do mictório de Duchamp não é pelo objeto artístico em si, sobre o qual qualquer reprodução industrial é muito próxima do original, mas pelo que ela significa em termos de história da arte. A Vênus de Willendorf é um trabalho de criança, perto de uma escultura de Michelangelo, porém o seu valor é muito mais um valor civilizatório do que um valor artístico.
Chegamos aqui à pergunta de como avaliar uma obra de arte, considerando-se que os critérios de análise são diversos e mesmo assim, em muitos casos elas são de fato analisadas, não só pelo seu caráter estético, mas mesmo por seu valor econômico.
Ainda que os três caminhos de análise de uma obra de arte sejam bem separados, eles se reúnem no momento da avaliação. Uma boa obra deve possuir três características: um apuro técnico, uma mensagem adequada e uma utilização. quanto mais uma obra se aproximar destes três tópicos, mais valor ela terá. Cada sociedade dá um valor maior ou menor para cada item. Por exemplo, a Rússia comunista, valorizava o caráter prático, criando uma arte monumental “Kitsch”, os poetas parnasianos valorizavam a técnica, a arte publicitária valoriza a mensagem e assim por diante.
Existe uma razão histórica porque apenas no século XIX e XX terem sido consideradas como manifestações artísticas as artes de fora da linha naturalista que vinha sendo seguida desde os gregos.
No final do século XVIII ocorreu o romantismo que manifestou-se de duas formas, por um lado o romantismo bucólico e rousseauísta e por outro o romantismo “mal du siècle”, shoppenaueriano e negativista. Isso ocorreu devido a uma regra econômica descoberta por David Ricardo que preconizava que o salário a ser pago por um trabalhador na indústria seria proporcional ao preço dos alimentos que ele consumia. Como as burguesias rural e industrial tinham interesses contrários, a arte e o pensamento dessa época manifestaram também essa dualidade, surgindo assim uma arte que preconizava os valores do campo e o bom selvagem e outra exatamente contrária que preconizava o homem como um ser bruto e de natureza perversa.
Os românticos rousseauístas, cujo interesse econômico era o de manter o status quo foram buscar nas raízes a sua expressão. O orientalismo, as Valkírias de Wagner, as artes indígenas e tradicionais foram aqui buscadas como símbolos dos bons tempos passados.
Por sua vez, os românticos shoppenaurenianos evoluíram para o naturalismo que é quase como uma caricatura do realismo dos séculos que o precederam e quer dizer, por última instância, que a realidade pode ser reavaliada.
A conclusão é que o critério ideológico pode e deve ser sempre considerado ao analisarmos uma obra de arte, pois o artista e o crítico sempre pertencem a um dos times surgidos após a revolução industrial e não são totalmente idôneos na sua avaliação.
Dessa maneira, percebemos que o critério de belo artístico precisa ser avaliado, primeiro dentro de uma interpretação de seu nível analítico: sintático, semântico ou pragmático, a seguir, precisamos avaliar cada obra quanto ao seu apuro técnico, seu conjunto de significados e conseqüências práticas, por fim, precisamos observar se o avaliador está vendo por uma ótica de ideologia urbana e industrial ou rural e conservadora, pois todos esses critérios influenciarão no gosto pelo belo.